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Professor de História: "É necessário reinventar o Exército brasileiro"

Professor de História: “É necessário reinventar o Exército brasileiro”

O professor de História, fundador do site Xadrez Verbal, integrante do canal Nerdologia e colunista do jornal Gazeta do Povo, publicou um artigo no qual faz uma análise do exército brasileiro e resgata a biografia do patrono do Exército, Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias e a tradição militar mantida desde então. Leia o artigo:

É necessário reinventar o Exército

Três de junho de 2021: o general de divisão Eduardo Pazuello, da ativa, foi absolvido pelo Exército após participar de ato partidário com o presidente Bolsonaro. A discussão sobre a politização do Exército ganhou os jornais, mas ela é um pouco míope. Miopia, nesse caso, em analogia ao seu sentido médico, quando a visão de longe é prejudicial.

É importante debater a postura política de Villas Bôas, a injusta demissão sumária de Pujol, a omissão do EB ao isentar Pazuello, etc, até por serem o que nos afeta hoje. Só que não adianta falar disso enquanto se fala do Exército de Caxias. E aqui é uma referência direta ao patrono da arma, Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias.

Caxias foi declarado patrono do EB em 13 de março de 1962. Virtualmente ontem. A justificativa para isso seria o fato de que Caxias simbolizaria o “soldado obediente”, o “pacificador” do Brasil, que esmagou revoltas regionais que ameaçaram a unidade nacional, que agiu também como “estadista” e liderou o Brasil no maior conflito de sua História, contra o Paraguai.

Antes de ser o patrono, a data de seu nascimento foi declarada o Dia do Soldado em 1925 e, em 1949, foi construído o Panteão em sua homenagem, na então capital Rio de Janeiro. É importante olharmos as justificativas da consagração de Caxias que mobilizou diferentes setores da sociedade, e também de diferentes ideologias. Não foi algo à toa. A ideia era consagrar um “soldado perfeito”, modelo, correto. Em alguns lugares, “caxias” terminou por significar um aluno que estuda muito, não apronta na escola.

Caxias teve episódios censuráveis em sua biografia e seu papel de “pacificador” era marcado pelo desequilíbrio: violência contra pobres e negros e acordos e conchavos com fazendeiros e aristocratas. Não é apenas isso, entretanto, que faz de Caxias uma figura problemática como patrono do Exército

É o fato de que era tão político quanto militar. Político no sentido partidário, governamental e cotidiano, não numa definição aristotélica de “homem é um animal político”. Caxias foi um dos pilares do Partido Conservador no período imperial. Nascido em família aristocrata, especialmente pelo lado da mãe, transitava nas elites da Corte. Além de ter governado províncias durante períodos revoltosos, foi por três vezes Presidente do Conselho de Ministros.

Ou seja, o primeiro-ministro, totalizando quatro anos no cargo máximo da política nacional. Costurou acordos e conchavos. Engajou-se ativamente na institucionalização e crescimento dos Saquaremas. Mesmo que se diga que por vezes ele ocupou cargos de maneira simbólica, fato é que Caxias foi político. Como falar do risco de politização do Exército de Caxias, um soldado que foi tão político quanto militar? 

Daí o uso do termo míope, pois nubla que o debate não é apenas pontual. É necessário ir além, numa reforma profunda e uma análise sincera do papel histórico do Exército brasileiro e do papel desejado para essa instituição no século XXI. Um Estado nacional como o Brasil não pode prescindir de forças armadas capazes e presentes, mas deve prescindir de velhos ideais e imagens cultivadas no século XIX e no prussianismo.

E é interessante notar que esse processo estava em curso, até ser travado pelas feridas examinadas na Comissão da Verdade 2012. Por exemplo, o Dia do Exército foi criado apenas em 1994, evocando a Batalha de Guararapes, data que uniu o surgimento do ideal de Nação brasileira à gênese do Exército e a luta contra um inimigo estrangeiro.

Até aquele momento, as principais cerimônias da força eram uma alusão ao papel do EB nos eventos ligados ao anticomunismo no século XX, como a Intentona de 1935 e o golpe militar de 1964, chamado nessa historiografia oficial de revolução ou de contragolpe. Quando, objetivamente, foi um golpe de Estado.

Após a democratização de 1988 que essa reforma da imagem da instituição começa, com o general Zenildo. Além de ter travado, ela precisa ir além. O culto da imagem de Caxias ganhou força apenas na década de 1920, em meio ao Tenentismo, a ideia de que os jovens oficiais militares seriam os salvadores da nação. O pensamento tenentista terá ligação direta com todas as crises político-militares do Brasil no século XX.

Novamente, isso reforça que Caxias é política. No Brasil, o Exército é, historicamente, um ator de mudanças políticas e institucionais, muito distante de países como Reino Unido ou os EUA. Outra questão é que Caxias foi um aristocrata, mal que ainda assola alguns setores das forças armadas, embora hoje menos, com reformas iniciadas nos anos 1970.

Vários generais de hoje são filhos de generais, dinastias da caserna. O mito de Caxias contribui para um pensamento aristocrata, quase de casta, que era prejudicial por várias razões. Repito que, hoje, a meritocracia está mais enraizada nas forças, mas nem sempre foi assim. E isso tem um custo, institucional e também econômico

Na década de 1970, quando da extinção da patente de marechal, por exemplo, o Exército tinha 73 marechais. Ou seja, havia mais marechais brasileiros do que franceses e britânicos. Somados. Por todo o século XX. Não fazia cabimento, fruto desse pensamento aristocrático e carreirista para o oficialato. Imagine-se o custo em soldos e pensões.

O leitor conhece o termo Pracinha, né? Sempre comento que o termo pracinha para se referir aos combatentes brasileiros na guerra mais justa que já houve, contra o nazi-fascismo, era pejorativo. Diminutivo de praça, o militar não comissionado, que não era oficial.

Após a guerra, esses soldados-cidadãos foram dispensados e abandonados à sorte. Apenas com a democratização, em 1988, que os “pracinhas” passaram a receber pensões do Estado. Sim, você leu direito. Por quarenta anos, pessoas que arriscaram sua vida pela bandeira ficaram relegadas. Incluindo aí duas décadas de governos militares, tão elogiados pelo presidente Bolsonaro.

O que explica? “Pracinhas”. Não são oficiais da estirpe de um Caxias. São apenas praças. E “quem gosta de praça é pombo”, piada entre oficiais de outras gerações. E essa foi uma política totalmente oposta ao que foi adotado em países como, repito, Reino Unido e os EUA, com as “G.I. Bills”, por exemplo, que inseriram os veteranos na sociedade.

Friso, novamente, que essa mentalidade está progressivamente mudando, mas ainda se faz presente, ainda mais numa instituição que preza pelas tradições e pelo historicismo. O texto defende, então, o fim do Exército? Não, como os frequentadores do site e ouvintes do podcast que são militares podem atestar. O ponto é que o Caxias do Exército é um político. E que existem opções, nessa reforma de imagem e da instituição.

Até 1920, o militar em mais alta estima no panteão nacional não era Caxias, era Manuel Luís Osório, atual patrono da cavalaria. Osório nasceu numa família de “classe média” e simboliza como ninguém a ascensão social que, no Brasil escravista, apenas o Exército possibilitou. Foi de alistado voluntário, aos quinze anos de idade, a marechal. Foi senador, sim, mas como homenagem. Não teve papel de governo e tinha posturas liberais.

Já no século XX, o marechal José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque foi talvez o soldado brasileiro mais condecorado por valor em batalha, comandando um pelotão francês durante a Grande Guerra, como parte da missão brasileira. Como reformador do Exército, foi o idealizador e fundador da Academia Militar das Agulhas Negras. Curiosamente, também foi ele quem avançou a agenda do culto de Caxias.

Também foi José Pessoa um dos principais estudiosos das questões nacionais no século passado, como a construção de Brasília, a exploração de petróleo, a modernização industrial brasileira e, principalmente, ferrenho crítico da participação de militares na política, por considerar nociva e com mentalidades distintas, que devem, cada uma, ficar em seu âmbito de ação.

Não é de estranhar, e nem é de hoje, que a caserna e política se misturam no Brasil. Primeiro, não há quadro legal que obrigue isso. Por exemplo, recentemente, o novo secretário da Defesa dos EUA, general Austin, teve que ser sabatinado e aprovado pelo Congresso antes de ser empossado. Pelo National Security Act de 1947, é necessária uma “quarentena” de sete anos antes que militares reformados possam assumir a função. Aqui, um general da ativa como Pazuello transita com a calma de um quadro do Centrão.

Principalmente, entretanto, existe um histórico e um espírito que justificam e até legitimam essa mistura. Esse histórico é pouco enfrentado, reduzido à “esquerdismo”, e sua legitimidade é pouco enfrentada, reformada. Se os motivadores e vendedores adoram dizer que “crise” é um sinônimo de oportunidade, que aproveitemos essas crises atuais como a oportunidade para encarar o século XXI, que já começou há muito tempo.

O texto é uma reflexão do autor. Caso o leitor queira aprofundar-se nesses temas, a reflexão baseia-se nos autores Francisco Doratioto, historiador, José Murilo de Carvalho, historiador, e Celso Castro, antropólogo. O título do texto, inclusive, dialoga com o livro A invenção do Exército brasileiro, de Celso Castro.

Filipe Figueiredo

Publicado em Xadrez Verbal

Foto- Guia do Estudante

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